“Vós
não sabeis de que espírito sois.” disse Jesus em Lc 9.55, aos
irmãos Tiago e João, que, quando perceberam que uma aldeia de Samaria se
recusava a permitir a passagem de Jesus, perguntaram-lhe se gostaria que
pedissem ao Pai que mandasse fogo do céu para destruir aquela vila. Jesus
explicou que o filho do homem não veio para destruir a alma dos homens, mas
para salvá-los.
Jesus estava ensinando ética para os seus discípulos. O
que eles sugeriram não combinava com caráter da obra, da pessoa e da natureza
de Cristo. Ética é isso, a coerência entre meio e o fim. Sei que há muitas
outras definições possíveis, mas, ficarei com esta, que aponta para a
finalidade e a natureza como norte. O meio pode ser um pensamento, uma
motivação, uma atitude, um ato, etc..
Tiago e João faltaram com a ética porque não entenderam
quem eram, portanto, não sabiam como se portar. Porque quem não sabe quem é e
para o que existe, não sabe o que pensar que motivação deve ter ou aceitar, que
atitude deve acalentar, que ação deve tomar. Jesus, ao contrário desses
discípulos, sabia quem era. Se chamou de o filho do homem, sabia que era o
grande representante da humanidade, o modelo de gente e o único caminho para a
nossa salvação. Jesus sabia, assim, exatamente, como deveria se portar em todos
os sentidos.
Para falar sobre a relação entre a igreja e a ética,
temos de entender o que é a igreja. A igreja é a comunhão dos seres humanos que
receberam a mesma revelação que Pedro e que, portanto, adora a Jesus. A
revelação que Pedro recebeu foi de que Cristo é o filho do Deus vivo, portanto,
é Deus, e Deus a gente adora. Adorar a Cristo é proclamá-lo, ele, a encarnação
da virtude de Deus e imitar Jesus de Nazaré. Porque o João disse que quem diz
estar nele deve andar como ele andou, e Paulo disse de si mesmo, que ele era um
imitador de Cristo, e que nós deveríamos seguir seu exemplo, disse, também, que
vivia para anunciá-lo.
Assim, a igreja é a comunhão de pessoas que, individual e
comunitariamente, no poder do Espírito, imitam e anunciam a Jesus de Nazaré, o
Cristo, no seu dia-a-dia, em tudo o que fazem. O Cristo que a gente imita é o
Cristo que habitou entre nós. Porque Paulo disse que a gente devia contemplar a
glória do Senhor e não o Senhor da glória; e a glória do Senhor é Jesus de
Nazaré, o Cristo, fazendo da vontade e comunhão com Deus a sua comida e bebida,
e andando por todos os lugares fazendo o bem para todas as pessoas.
Também, temos de nos lembrar de que, quando João estava
nas regiões celestes chorando porque não havia quem pudesse tomar o livro da
mão daquele que estava sentado no trono, um ancião apontou para ele o Leão da
tribo de Judá, porém, tudo o que ele conseguiu ver foi o Cordeiro que foi
morto. O céu pode falar do Leão, porém, a gente só vê o Cordeiro, se temos de
imitar alguém, só podemos fazer isso em relação a alguém que a gente pode
observar, e a gente vê o Cordeiro, portanto, só dá para imitar o Cordeiro.
A espiritualidade cristã não é a do Leão, mas, a do
Cordeiro. Isso deveria influenciar a nossa liturgia, de modo que tanto as
nossas músicas como os demais movimentos litúrgicos deveriam nos mostrar o
Cordeiro, que foi morto e que ressuscitou ao terceiro dia, em sua devoção ao
Pai e serviço aos homens.
A igreja também é um homem coletivo, Paulo disse que
Jesus Cristo criou, nele mesmo, um Novo Homem, esse novo homem é fruto da
reconciliação entre judeus e gentios. Recordemos que, para a mentalidade
judaica, o mundo estava dividido em dois grupos: judeus e gentios. O que os
separava era a compreensão e o relacionamento com Deus, os judeus sabiam de
tudo sobre Deus e com ele tinham comunhão, os gentios, por sua vez, não tinham
nada, estavam sem Deus no mundo e, portanto, sem senso de finalidade e sem
esperança. Jesus Cristo ao apresentar-se a ambos como a única possibilidade de
realmente se ter acesso às promessas de Deus, colocou-os numa mesma base,
acabou a briga, tanto um quanto o outro precisam de Cristo para ter Deus.
À medida que judeus e gentios vão admitindo isso, e se
rendendo a Jesus, passam a formar a nova humanidade, porém, com uma diferença
significativa em relação a anterior, são habitação do mesmo Espírito e passam a
se amar tanto que essa unidade, o homem coletivo, fruto desse Espírito,
aparece. E a imagem e semelhança da Trindade é plenamente manifestada.
Então, viver a Igreja é fomentar o surgimento dessa
comunidade que manifesta essa unidade. Isso, também, deveria dar o tom de nossa
liturgia; vocês já se deram conta de quantas músicas nós cantamos enfatizando a
primeira pessoa do singular, eu, eu, eu... Onde está o nós? Quando vamos
aprender a nos ver a partir da comunidade?
E tem mais, a igreja também está identificada com o Reino
de Deus. Em Daniel o Reino é um domínio exercido por um povo que nunca o
perderá; em Apocalipse é um povo de sacerdotes que reinará sobre a terra; em
João Batista o Reino exige que as pessoas se arrependam, o que vai desembocar
na prática da solidariedade; na fala de Jesus, que confirma João, o Reino é um sistema
onde o poder é o serviço; é um lugar que só pode ser visto do lado de dentro,
pois, tanto para ver como para entrar a pessoa tem de nascer de novo, logo, só
vê se entrar, então, quem viu, viu do lado de dentro; e só pode participar dele
quem rompeu com tudo para viver apenas por ele; é um lugar onde só a vontade de
Deus é feita; é uma realidade a ser vivida e a ser aguardada, assim como, uma
mensagem a ser anunciada prioritariamente aos pobres.
Na fala de Paulo, o Reino é um estado de alegria, paz e
justiça, onde o trabalhador é o primeiro a desfrutar de seu trabalho; onde quem
colheu de mais não tem sobrando e quem colheu de menos não passa necessidade, e
todos trabalham para acudir ao necessitado.
A Igreja é o povo do Reino, que o vive e o sinaliza. Ser
ético, então, para a Igreja, é ser coerente na história, em meio à sociedade,
com a complexidade de sua natureza e finalidade.
Em que músicas, leituras e
orações, mesmo, nosso compromisso como povo do reino aparece? A ética começa na
liturgia, na forma como nós apresentamos o nosso culto a Deus.
A gente é ético no contexto onde a gente vive. O nosso
contexto é o Brasil, país de contrastes perversos: uma das maiores economias e
um dos piores índices de distribuição dessa riqueza; uma tecnologia
desenvolvida ao lado dos piores índices de alfabetização e de aquisição de cultura;
uma das arquiteturas mais reconhecidas e respeitadas ao lado de um dos maiores
de índices de déficit habitacional e de sub-moradias; um dos maiores
territórios do planeta, com terras das mais férteis ao lado dos piores índices
de distribuição de terra; uma das mais eficazes agriculturas ao lado da fome e
da subnutrição; uma medicina das mais desenvolvidas ao lado de índices
estarrecedores de mortalidade infantil.
Temos uma das legislações mais avançadas na área dos
direitos humanos ao lado de graves índices de violência contra a mulher, abuso
de crianças e adolescentes e prática de tortura; um dos códigos penais de maior
senso humanitário ao lado de um dos sistemas carcerários mais aviltantes e
degradados; uma das democracias raciais mais celebradas ao lado de um racismo
pérfido, pois, sutil, não confessado e disfarçado de problema socioeconômico,
onde o negro, cantado em prosa e verso, não consegue ser cidadão e está
condenado à pobreza e a ignorância.
Temos uma das constituições mais avançadas ao lado dos
piores e mais corruptos políticos encontrados numa nação classificada entre as
modernas; um dos sistemas de votação mais avançados ao lado de um processo
eleitoral marcado pela preponderância do poder econômico e por vícios que
perpetuam no poder uma casta de caudilhos, sistema onde se tem a obrigação do
voto mas não se tem o direito de veto, onde o eleito pelo povo transforma o
mandato em patrimônio pessoal e fonte de riqueza; uma cultura marcada pela
criatividade ao lado de um mercado cultural colonizado e empobrecedor; um dos
povos que mais confessam a existência de Deus ao lado de uma vergonhosa
manipulação religiosa e de arraigadas práticas de superstição, que o tornam
prisioneiro de forças malignas.
O que significa agir de forma coerente à nossa natureza e
finalidade num contexto desse?
A face mais visível e, aparentemente, a que mais cresce
da igreja brasileira ao invés de denunciar a injustiça social e propor e viver
uma economia solidária passou a pregar uma teologia que sustenta a desigualdade
ao afirmar que a riqueza deveria ser o alvo do crente, e que o caminho é a fé
atestada pelo nível de contribuição e pela capacidade de arbitrar, por decreto,
sobre o que Deus deve fazer.
Ao invés de denunciar a miséria e a dívida do estado para
com os excluídos passou a denunciar a provável pequena fé dos desgraçados; ao
invés de socorrer aos enfermos, enquanto denunciava o descaso, começou a
apregoar uma cura instantânea para aqueles que, com certo tipo de fé, frequentarem
o ministério certo.
Ao invés de combater o racismo passou a estigmatizar como
maligna tudo o que se relaciona com a cultura negra, como se o demônio fosse
negro e, portanto, tudo o que é negro fosse demônio.
Ao invés de denunciar a corrupção passou a fazer
negociatas com sórdidos representantes da camarilha que mantém o país no
subdesenvolvimento, assim como, a participar, sem restrições, do jogo político,
cassando o direito político de suas ovelhas, pelo constrangimento, para que
votem nos candidatos escolhidos pelos líderes; líderes que ao invés de
praticarem o serviço para que se forme uma comunidade, tornaram-se caudilhos
que se locupletam à custa da boa fé, de gente que apenas queria Deus.
Líderes e que se escondem em títulos pomposos enquanto
transformam a igreja numa cultura de massas fácil de manobrar; ao invés de
pregar a graça que foi de modo abundante derramada através de Cristo Jesus,
passaram a demandar sacrifícios acompanhados de doações cada vez mais
constrangidas, para que o fiel se tornasse apto para receber a bênção desejada.
Líderes que ao invés de promoverem a mansa
espiritualidade do cordeiro, promoveram a esquizofrênica espiritualidade do
leão, que tenta transformar em “já” o “ainda não” do reino, enquanto transforma
o “já” do reino em “nunca”; ao invés de viverem, sinalizarem e anunciarem o
reino passaram a caçar os principados e potestades nas regiões celestiais, ora
localizando e derrubando os seus postes ídolos, ora ungindo de alguma forma
criativa a cidade, inaugurando o que James Houston chamou de evangelização
cósmica.
Líderes que ao invés de fomentarem o surgimento da
comunidade do Reino, importaram modelos de agrupamento que aumentam a
produtividade da igreja na promoção do crescimento numérico, que passou a ser
aval de benção divina; ao invés de pregarem e praticarem a vitória de Cristo na
cruz e na ressurreição sobre todos os agentes do mal, passaram de um lado, a
pregar uma teologia que mais infundia medo do que fé, e, de outro lado, a,
segundo, o articulista Ricardo Machado, umbandizaram as igrejas.
É claro que tivemos problemas éticos em outros segmentos
de igreja, sim, porque Igreja Brasileira é uma categoria ideológica evocada nas
generalizações; o que existe, de fato, é uma gama de Igrejas no Brasil, não
estou falando das divisões denominacionais, que, aliás, estão desfiguradas,
mas, dos vários jeitos de ser igreja, que acabam por se constituir em segmentos
estanques entre si.
Houve segmento que, diante dessa realidade cruel
recrudesceu o fundamentalismo legalista e alienado, outro houve que assumiu a
igreja como uma empresa, sonhando também com impérios, e passou a importar
modelos de gerenciamento que a organizasse, desenvolvesse excelência
ministerial, e produzisse crescimento, usando, muitas vezes, o princípio do
“apartheid”; e as ovelhas foram feitas mão de obra e os pastores foram feitos
gerentes de programa.
Graças a Deus, porém, não precisamos entrar em desespero,
pois, a crise na fé cristã não é o pecar é o não se arrepender. E há sinais de
arrependimento. Pois há o outro lado: Jesus Cristo não diz apenas: “vós não
sabeis de que espírito sois”, diz, também: “vinde benditos de meu pai”.
Nos vários segmentos da igreja, a resposta apareceu:
pipocaram programas de ação social, creches, distribuição de cestas básicas,
distribuição de alimentos para moradores de rua, entre outros. Os programas
começaram assistencialistas, mas, pouco a pouco, foram se tornando mais
voltados para soluções estruturais.
Milhares de ONGs foram criadas com as mais diferentes
finalidades de cunho social: escolas, casas-lar, programas de desenvolvimento
comunitário, programas de alfabetização, e muito mais. Um leve, mas decisivo
movimento do Espírito tem se feito sentir cada vez mais, o interesse de grupos
dos vários segmentos em se ajuntarem numa frente evangélica pela inclusão
social.
É crescente interesse dos jovens, pastores e leigos, no
significado dessa resposta, na retomada da questão da espiritualidade, iniciada
por parte do segmento da missão integral, nos fazendo revisitar a patrística,
nos encorajando a repensar o fazer pelo fazer. São sinais que evidenciam esse
movimento discreto, mas firme do Espírito de toda a consolação, que nos está
reconduzindo a coerência.
É daqui que temos de continuar. Temos uma teologia para
desenvolver, precisamos, sob essa nova ótica, repensar a teologia sistemática e
a identidade protestante; temos uma espiritualidade para retomar, a
espiritualidade do Cordeiro; temos uma igreja para edificar, de modo que, pelo
menos nela, todas as raças e classes desapareçam dando lugar à única raça que
Deus criou, a raça humana; e, com o fim das classes, todos sejam gente como
gente tem de ser, à imagem de Jesus de Nazaré.
Temos um país para influenciar, temos profecia a
proferir. Precisamos refletir, a partir dessa compreensão teológica, sobre o
labor político e partidário; sobre economia; sobre genética; sobre
bioengenharia; sobre a globalização, sobre a chamada pós-modernidade, sobre a
nova sexualidade, sobre a fermentação religiosa, sobre o desafio do Islã, sobre
formas de fazer entendida a mensagem da cruz, num mundo em mutação; sobre a
questão agrária e o meio ambiente; sobre a urbanização na América Latina; sobre
a relação da igreja com o estado.
Temos de retomar o movimento de missão transcultural,
dentro e fora de nossas fronteiras.
Temos de nos encontrar mais, trabalhar mais juntos, abrir
o círculo para que novos não só sejam atraídos, como já o estão sendo, mas,
para que se sintam bem vindos e em casa.
Temos um reino para viver e para
manifestar. E não estamos sós: o Senhor Jesus está onde sempre esteve reinando
sobre sua Igreja e sobre todo o universo; e o Espírito Santo está aqui,
pairando sobre o caos, soprando vida, levando a Igreja que está no Brasil a um
avivamento que ainda não conheceu o avivamento que chama à história o clamor de
Jesus, retratado por Lucas: “Bem
aventurados os pobres porque deles é o Reino de Deus”.
Fonte> Ariovaldoramos.blogspot.com
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